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Uma carta de ruptura.



A um certo conhecido,

 

Há tempos não te vejo, sua voz mal lembro, e nossas aventuras, antes tão vivas, já não me encantam. Meus dias, desde então, estão mais leves - sinto que estou em harmonia, como a dança das árvores sob a brisa suave. Ainda percebo suas tentativas de se aproximar e, confesso, às vezes,  por um instante, quase cedo à lembrança dos nossos dias de simpatia - mas no mesmo instante me recordo que não estou mais sozinho.

É tentador revisitar o passado, mesmo sabendo que o presente é incomparável. Houve um tempo que tudo isso, em muito me entristecia. Eu martirizava meus dias por não conseguir me livrar da sua companhia, mesmo sabendo da maravilha que me esperava ao me afastar de você. Sentia que minhas batalhas eram travadas por poucos soldados - e entre eles não havia sequer um armado. A guerra  começava, seus primeiros ataques avançavam, e do meu exército, inevitavelmente, uma bandeira branca se erguia. Você sempre manteve aquele lenitivo que, por instantes, me fazia sentir vivo - mas, em pouco tempo, um profundo abismo surgia em meu peito.

Quanta angústia senti naqueles tempos! Lembro-me de nunca ter olhado para você como o culpado. Eu te pedia conselhos e, claro, nunca estive tão perto de errar novamente quanto após esses diálogos. Em minha vida, suas aparições foram diversas - cada uma delas envolta nas mais abjetas, vis e meticulosas estratégias. Recordo-me de algumas delas e percebo que seu jeito de agir guarda em sua essência premissas imutáveis. Com o tempo, compreendi que há duas que são pilares do seu modo de agir. 

Em primeiro lugar, percebo que sua intenção nunca é nos afastar por completo do propósito de Deus - isso não seria interessante para você, pois, para você vale muito mais um adormecido dentro da igreja do que um perdido no mundo. Demorei muito a compreender o motivo disso, até que, em contato com o pleno Discernimento, entendi que para você sabotar a jornada de um adormecido que ainda segue alguns preceitos corretos é muito mais fácil do que manter aquele que está totalmente afastado do caminho. Olhando para trás, observo que eu era um dos seus favoritos - e como me sinto horrível de saber disso. Minha vida era levada em prol do bel prazer: disfarçava indo à igreja aos domingos, às sextas; e assim logo que saía, partia em sua companhia. Ainda assim, naquela época, eu não era tratado como perdido. Mas os tempos passaram, e continuaste sendo uma pedra em meu caminho, impedindo-me de caminhar na direção correta.

Em segundo lugar, seus passos são cuidadosamente calculados - não por sua capacidade, mas porque sabe nossas fraquezas. Desse modo, tudo o que você faz guarda os devidos detalhes e é extremamente sutil, a ponto de só percebemos seus efeitos quando já estamos mais longe do que poderíamos imaginar. Sozinho, eu não seria capaz de te vencer. Ainda me espanta os lugares que já me levaste, e como eu não conseguia enxergar o tamanho do desvio de rota que estava tomando em minha vida. Aquele burraco crescia a cada dia, e tantas foram as vezes que depois dos seus prazeres, eu via a vida sem sentido. Era justamente nesses momentos que você se afastava e eu voltava para perto da Presença e recebia o convite de me manter com Ele para sempre. Mas então, quando menos esperava, você se reaproximou - e, sem ter firmado na rocha, o mesmo filme se repetia. 

Quando tive uma conversa com o meu Melhor Amigo, Ele abriu meus olhos e, pela primeira vez, vi o quanto me deixei levar por você durante toda minha vida - e percebi que todas as vezes a minha solução estava de braços abertos, esperando por mim. Lembro-me de chorar como uma criança; e mesmo envergonhado, Ele me fazia me sentir preenchido por uma chama de amor que não se apaga. Sabe, naquele momento compreendi: minha batalha só seria vencida na companhia d’Ele. Entende por que não te vejo há tanto tempo? Já não sou mais apenas eu quem trava essa batalha com você. O jogo se inverteu: o exército infinito e imbatível habita dentro de mim - para sempre.  

                                                                                          

                                                                                          - Adeus, com você, não vivo mais.



A carta acima carrega uma mensagem de ruptura - ruptura com o passado, com o presente e com o futuro. Trata-se de uma quebra com a antiga perspectiva de quem vivia vencido pelo mal e dependente dos prazeres carnais. Quando compreendemos a profundidade de estar em Cristo, com Deus e com o Espírito Santo habitando em nós, percebemos que, outrora, vivíamos segundo a carne. O resultado disso era um vazio constante, uma busca incessante por prazeres momentâneos - como uma droga que dá sensação de preenchimento, mas nunca sacia. Nessa condição, faltava-nos discernimento para distinguir o que era correto e entender o que, de fato, estava nos afastando da verdadeira vida. 


O caminho é estreito, porque deixar a velha natureza sozinho é impossível. Quanto mais tentamos lutar com nossos próprios punhos, mais alegramos o inimigo, pois ainda não compreendemos o verdadeiro significado do amor de Cristo. Não entendemos que não é nada sobre nós - essa luta não se vence sozinho.

É lindo pensar nisso, não é?  Mas garanto que a vitória que te espera é mais radiante e bela do que qualquer sensação de prazer momentâneo, mais linda do que tudo que podemos imaginar nessa vida. Veja: do pouco que sabemos, já conseguimos vislumbrar a magnitude de Deus - e, mesmo assim, ainda não entendemos nem um fragmento dela. Isso significa que Seu amor é inigualável e inimaginável. Assim, busque aquilo que agora os olhos não podem ver e que a mente não pode conceber, pois, quando estiver face a face com Ele, entenderá  que essa entrega foi a melhor decisão da sua vida.

Busque se entregar como Daniel, como Paulo, como tantos outros que se fizeram pequenos aos pés do Pai. Inspire-se nesses homens de fé - e, se os personagens bíblicos lhe parecem distantes, busque homens de fé ao seu redor. Ainda que sejam imperfeitos, há neles uma caminhada marcada pela fé e pelo temor a Deus. O que encontramos em todos esses exemplos é que essas pessoas se colocaram como servos do Senhor, libertando-se de seus próprios desejos humanos e permitiram que o Amor os guie. 

Permita-me fazer uma última colocação que me parece pertinente: somos seres humanos, dotados de uma natureza pecaminosa. Recebemos a paz com Deus por meio da obra redentora de Cristo Jesus no madeiro, e fomos presenteados com o Espírito Santo, que habita em nós - sem merecermos. Voltamos, então, ao ponto principal de que não é sobre nós.

Por causa da nossa natureza humana, não estamos livres de erros. Contudo, com o Espírito Santo, conseguimos vencer as lutas. Quero, porém, te advertir: quando errarmos - e isso poderá acontecer -, não nos tornamos indignos. A vergonha e o arrependimento virão, e eles fazem parte do agir do Espírito Santo. Por isso, não se martirize. Busque melhorar, mas não se permita estagnar; deixe o Espírito te ajudar.

Afinal, somos seres imperfeitos e, até o fim de nossas vidas, estaremos lutando contra nossas tentações e sendo lapidados. A perfeição só virá quando Jesus voltar. Até lá, seguiremos imperfeitos - mas o segredo está em como e quando começamos a travar essa batalha, redendo-nos ao Espírito. Com Ele, encaramos cada dia com alegria e gratidão. 

Vivam um dia de cada vez e louvem a Deus por cada oportunidade de contemplar o amanhecer e de honrar o título de servo do Altíssimo, elevando o nome d’Ele acima de tudo. 


 
 
 

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